Espaço de debate de temas de Economia Portuguesa e de outros que com esta se relacionam, numa perspectiva de desenvolvimento

sexta-feira, agosto 10, 2012

“A Trilha Perdida”

Tenho comigo um livro sobre a história económica do Brasil (A Trilha Perdida: caminhos e descaminhos do desenvolvimento baiano no século XX) que, como o subtítulo indica, dá uma especial atenção à evolução da realidade regional da Bahia. Foi oferta do seu autor, Noelio Dantaslé Spinola, há mais de um ano, e tem como data de edição o ano de 2009 (Edição da UNIFACS). Aguardava desde então a oportunidade do ler.
A curiosidade que me suscita(va) a economia e a sociedade brasileiras, passadas e presentes, juntamente com a circunstância do seu autor ser coorientador de uma minha doutoranda brasileira incitaram-me nesse sentido. Por contraponto, a falta de tempo, conjugada com a extensão da obra (527 páginas), foram retardando o desencadear dessa leitura. Uma deslocação ao Brasil este Verão, com a conexa multiplicação de horas de voo, propiciou-me a oportunidade de fazê-lo.
Antes de me referir brevemente a alguns elementos de curiosidade que encontrei no livro em referência, quero deixar uma nota sobre o seu autor, cujo percurso académico me suscitou, ele próprio, a atenção.
Nascido na Bahia, em 1941, e doutor em Geografia e História pela Universidade de Barcelona, Noelio Dantaslé Spinola concluiu o seu doutoramento já com mais de 60 anos, sendo na atualidade Professor Titular da UNIFACS, Salvador da Bahia. No prefácio do livro, referindo-se-lhe, o reitor da dita instituição escreveu o seguinte: “O autor […] milita no espírito do grande chamado de Marx para que os intelectuais não procurarem apenas compreender o mundo, mas que se dediquem a transformá-lo (Spinola, 2009, p.23).
Não havendo oportunidade aqui para fazer a recensão propriamente dita do livro, a partir da minha condição de curioso da realidade histórica brasileira e professor de economia regional, avançarei nos parágrafos seguintes alguns notas de leitura que, porventura, irão ao encontro da curiosidade de alguns portugueses e traçarão linhas de “continuidade” entre as realidades portuguesa e brasileira e, quiçá, poderão motivar a leitura do livro.
Como primeiro dado, que desde logo me escapava, quero invocar o evoluir histórico das capitais do Brasil, para sublinhar como antecessoras de Brasília, o Rio de Janeiro e Salvador da Bahia, por ordem inversa do momento histórico em que essas cidades ocuparam essas funções político-administrativas. Este deslizar da capitalidade política não parece ter sido um incidente com marca exclusivamente política. Pelo contrário, como escreve Noelio Spinola logo a abrir o seu livro e sublinha repetidamente ao longo de toda a obra, “No caso específico da Bahia, seu declínio inicia-se com a transferência do Governo  Geral da Bahia para o Rio de Janeiro em 1763, perdendo a província sua condição de capital política do país e todos os ganhos inerentes a essa condição” (Spinola, 2009, p.37). Invocando outro autor brasileiro, acrescenta de seguida que “isto se deveu ao facto do polo de desenvolvimento do Brasil ter saído do Norte/Nordeste, firmando-se no Sudeste (Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo). A descoberta do ouro nas Minas Gerais e, posteriormente, o advento do ciclo do café, plantado inicialmente no Rio de Janeiro e depois em São Paulo, deslocaram o eixo da economia, marginalizando para sempre as províncias do Nordeste e do Norte” (Spinola, 2009, p.37).
A segunda nota vai para a evolução dos padrões monetários no Brasil, em relação com a estranheza da designação atual da moeda brasileira, o Real. Pretendo a-propósito assinalar a falta de continuidade do nome da unidade monetária com as designações das que a antecederam ao longo do século XX: Cruzeiro; Cruzeiro Novo; Cruzado; Cruzado Novo; Cruzeiro; Cruzeiro Novo. Paradoxalmente, face ao que anoto antes e à realidade política republicana brasileira, o antecedente da designação atual remete para os Réis do tempo colonial, que sobreviveram (a moeda, digo) até Outubro de 1942. Aliás, Spinola (2009, p.74) vai mais longe, assinalando que os “RÉIS” se sugerem como “denominação derivada do ´REAL` que era a moeda portuguesa dos séculos XV e XVI, na época do ´descobrimento`”.
Numa terceira e última nota, entendo fazer menção à implementação que se deu a partir de certa altura de um conjunto de iniciativas públicas de planeamento visando impulsionar a transformação da economia brasileira, em geral.
Entre os planos produzidos merece menção o ´Plano de Metas`, ao tempo do governo de Kubitschek. Em resultado dessa ação de planeamento, “de 1956 a 1960, o produto interno bruto (PIB) crescei 8,1% e a renda per capita 5,2% ao ano, em média” (Spinola, 2009, p. 228). Esta atuação do poder público foi pensada, disse, para acelerar o desenvolvimento económico mas, particularmente, a industrialização do Brasil, induzindo o investimento privado, quer nacional quer estrangeiro. Aparte a ênfase na indústria, a fazer lembrar o pensamento prevalecente em Portugal na mesma altura do sector industrial como motor do crescimento económico (“Industrialize-se o país que o resto irá atrás”), é especialmente interessante reter o papel desempenhado por Celso Furtado nesta fase da gestão da economia e do território brasileiro, ele que será, porventura, o economista brasileiro ainda hoje mais conhecido na Europa.
Depois de ter liderado tecnicamente o Codeno (Conselho de Desenvolvimento do Nordeste) e a Sudene, uma agência de desenvolvimento regional de iniciativa central dotada de amplas atribuições em matéria de desenvolvimento territorial, acabou por ser ministro do governo de Goulart. No dizer de Albert Hirschman, citado por Spinola (2009, p.232), a Sudene constituiu-se numa espécie de “ministério do desenvolvimento regional, dotado de excecional força executiva”.
Em razão da inspiração teórica das políticas e dos seus executantes, num comentário/balanço produzido a propósito desta fase da gestão da realidade brasileira, secundando outros autores, Noelio Spinola (2009, p.235) adianta que “Dificilmente se encontraria, na história recente da economia brasileira, uma integração tão estreita entre as estratégias teóricas de ação quanto aquela existente entre o ´Plano Trienal de Desenvolvimento Económico e Social` (Brasil, 1962), o ´II Plano Diretor da Sudene` (Brasil, 1963), ambos referentes ao período 1963-1965, e o estudo do GTDN (Brasil, 1959). Dificilmente, também, se encontraram descompassos maiores entre o que preconizavam aqueles documentos e a evolução da realidade sobre a qual deveriam intervir” (itálico meu).
Esclareça-se que o GTDN (Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste) foi uma estrutura criada pelo governo Kubitschek, em 1956, que precedeu o Codeno e a Sudene, e foi responsável pela elaboração de um diagnóstico aprofundado da realidade do território objeto da sua ação e, particularmente, da questão agrária e da problemática originada pela seca que atingiu a região em anos precedentes, e pela proposição de um conjunto de orientações de política tendentes a reorganizar o sector e “a reverter o problema da oferta de alimentos e a absorção do excedente populacional” (Spinola, 2009, p.215).
O livro tem muito mais que se possa comentar, para além de informação abundante que disponibiliza sobre o tecido industrial da Bahia e do Brasil, nomeadamente o número de unidades de produção existentes na Bahia em diversos momentos históricos, com explicitação dos ramos de atividade, volumes de emprego e peso relativo dos diversos sectores de atividade no seu tecido industrial. Para o leitor português, tem o interesse adicional de se poderem encontrar aí dados surpreendentes sobre paralelismos e impasses análogos vividos pelas economias brasileira e portuguesa, entre outras coisas merecedoras de estudo e ponderação. Tem entretanto o inconveniente de ser bastante longo, como assinalei antes, e de multiplicar a apresentação de dados, tabelas e referências bibliográficas que nem sempre facilitam o bom entendimento por parte do leitor, particularmente por parte de alguém não especialista e/ou menos conhecedor da história social, económica e política do Brasil. Nem por isso deixa de ser um documento cuja leitura deixo de recomendar a quem busque melhor conhecer a evolução histórica daquela economia e sociedade. 

J. Cadima Ribeiro

Referência da obra: Spinola, Noelio Dantaslé (2009), A Trilha Perdida: caminhos e descaminhos do desenvolvimento baiano no século XX, Edição UNIFACS, Salvador.

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